Moda, Cultura e Sentido
Por Renata Pitombo
02/05/2007
O homem se veste e enquanto tal exerce sua atividade significante;
portar uma vestimenta é fundamentalmente um ato de significação,
para além dos motivos de pudor, proteção e adorno. "Se vestir é um
ato de significação e, portanto, um ato profundamente social
instalado no coração mesmo da dialética das sociedades", defende
Barthes. De fato, talvez o pesquisador, sobretudo o sociólogo e o
historiador, deva estar atento, acima de tudo, para o fato de que
toda cobertura corporal tem a possibilidade em si mesma de vir a se
constituir em um sistema, consagrado por uma determinada sociedade.
Pensar, sobretudo, como a vestimenta pode tornar-se costume,
elemento de comunhão, de socialização, em última instância.
A moda é sempre um fato de costume; mas sua origem pode representar
um ou outro movimento. Tanto a moda é um fato de costume elaborado
artificialmente por especialistas (por exemplo, a Alta Costura),
tanto ela é constituída pela propagação de um simples fato de
vestimenta, reproduzido numa escala coletiva por razões diversas.
Parece que na época atual (1957), o primeiro procedimento (dispersão
de um fato de costume em fato de vestimenta) seja sobretudo
freqüente na moda feminina, enquanto que o segundo (extensão de um
fato de vestimenta em fato de costume), se damos mais atenção aos
detalhes da vestimenta, encontre-se principalmente na moda masculina
(Barthes, 2001, p.39).
Em um de seus pequenos, mas astutos artigos dedicados ao tema da
vestimenta, Barthes a identifica como um fenômeno concernente a todo
ser humano, na medida em que diz respeito a todo corpo humano, a
todas as relações do homem com seu corpo e também deste corpo com a
sociedade.
A relação entre o indivíduo vestido e a sociedade que propõe o
código do vestir pode se medir através das grandes mutações que
modificam o sistema vestimentar em comparação às possibilidades de
difusão e de acolhimento. O estudo da moda no século XIX mostra bem
a inter-relação entre estes dois pólos, uma vez que retrata o
funcionamento do sistema vestimentar num momento em que a promoção
do anonimato e do indivíduo, implicando numa busca de distinção
através da aparência e o conflito com todo o ideal de uniformidade e
conformismo.
Este movimento entre a diferença e a identidade coletiva anima ainda
hoje nossas escolhas vestimentares. Estamos a todo momento
presenciando e participando plenamente enquanto atores deste teatro
da relação de reciprocidade entre o individual e o coletivo.
Tal perspectiva encontra ressonâncias em especulações desde há muito
desenvolvidas no campo teórico sobre a dinâmica da moda, sustentada,
sobretudo, por sociólogos e antropólogos, que vem a sua vigência
atrelada ao refrão da distinção social, a exemplo de autores como
Gabriel de Tarde e George Simmel. Tarde concentra sua análise sobre
o mecanismo da imitação, estabelecendo uma diferenciação entre os
tempos em que reina o costume e os tempos modernos em que prevalece
a moda, evidenciando o quanto a dinâmica moda é responsável por
alterações econômicas, políticas e sociais, na medida em que altera
a própria noção de necessidade, injetando a novidade e a mudança
constante como valores sociais.
Em um tempo em que o costume impõe a cada localidade alimentos,
vestimentas, móveis, etc. que restam fixos por muitas gerações, é
claro que a produção em grande escala não será significativa.
Enquanto que em épocas em que reina a moda uniforme de um país ao
outro, mas modificável anualmente, a indústria visará a quantidade e
não a solidificação dos produtos (Tarde, 1993, p.361).
Também Simmel recorre ao elemento da imitação, mas o trabalha sempre
de modo binário: imitação/distinção, ressaltando o processo
dialético entre a necessidade de imitar e a vontade de se
diferenciar do ser humano, dinâmica que se encontra completamente
incorporada ao modo de funcionamento do fenômeno da moda de uma
maneira geral e também no campo do vestuário, de uma forma
específica. Mas é justamente no setor da vestimenta, em especial,
que o autor concentra seus argumentos em defesa de que é o capricho
de distinção das classes ditas superiores que engendra a novidade,
que é, por sua vez, imitada pelas classes inferiores, o que induz,
mais uma vez, as classes superiores a investirem em uma outra
novidade e assim por diante, num ciclo contínuo. Esse ciclo
explicaria o porque do fenômeno moda, segundo o autor.
A moda é, portanto, (...)um produto da divisão em classes, e ela se
comporta da mesma maneira que outras formações - sobretudo a
dignidade - que têm a dupla função de reunir um círculo isolando-o
dos outros. Assim a moda significará a ligação de um indivíduo a
seus pares, a unidade de um círculo definido por ela, e, ao mesmo
tempo, também o fechamento deste grupo em relação aos inferiores
(...). Associar e distinguir, estas são as duas funções de base aqui
inseparáveis, da qual a primeira ainda que oposta logicamente à
segunda, é sua condição de realização (Simmel, 1988, p.93).
Perspectiva que, aliás, permaneceu soberana por muito tempo, sendo
apenas exposta a novas contribuições, o que se por um lado permitiu
a compreensão de modo exaustivo do papel exercido pela moda na
dinâmica da distinção entre as classes sociais, encontrando aí,
inclusive, a justificativa para os ciclos breves de transformação do
universo fashion, impossibilitou ou pelo menos diluiu a observação e
a discussão de outras instâncias tão significativas quanto,
imanentes ao fenômeno moda, a exemplo da sua dimensão
simbólica-lúdica, aspecto que pretendemos por em relevo neste
trabalho.
Se concordamos com o que propõe Marshall Sahlins em Cultura e Razão
Prática - que toda produção é a realização de um esquema simbólico -
acolhemos sem estranhamento algum a idéia de que a indumentária da
conta de uma certa estruturação simbólica própria de uma determinada
cultura. Nesse sentido, de acordo com as observações de Sahlins,
pode-se dizer que a roupa (esse produto desejado por muitos) seria,
portanto, um certo universo simbólico transformado em matéria.
Ao acionar o sistema do vestuário, Sahlins vai afirmar e explicitar
que a indumentária não reproduz apenas as divisões e subdivisões
entre grupos etários e classes sociais, mas também a distinção entre
feminilidade e masculinidade tal como é conhecida na nossa
sociedade. Do mesmo modo, pode-se reconhecer através do vestuário a
demarcação entre cidade e campo e, dentro da cidade, entre o centro
e os bairros residenciais, assim como também a distinção entre a
esfera pública e a privada. Além dessa marcação espacial, vê-se uma
distinção do próprio tempo - diário, semanal, sazonal. Tem-se roupas
para a noite e roupas para o dia, vestidinhos de fim de tarde, entre
outros. "Cada uma referencia a natureza das atividades determinadas
por aqueles períodos de tempo, da mesma maneira que as roupas de
domingo estão para as roupas de dia de semana como o sagrado está
para o profano" (SAHLINS, 1979, p.202).
Observamos na sua abordagem não só a expansão do refrão da distinção
social, um vez que não se atém apenas as diferenças referentes às
classes sociais; bem como a apropriação e explicitação da dimensão
simbólica da roupa. Embora possamos reconhecer talvez o risco de uma
análise que vê a roupa como reflexo de, representação de, herdeira
de uma certa noção de simbólico que se oporia à idéia de imaginário,
o trabalho de Sahlins é já um passo na direção de uma concepção mais
abrangente do fenômeno moda. Sem contar que o autor concebe a
aparência como uma das formas mais importantes de enunciado
simbólico na sociedade ocidental, pois, nas suas palavras, "é
através das aparências que a civilização transforma a contradição
fundamental de sua construção em um milagre da existência: uma
sociedade de perfeitos estrangeiros tendo uma coesão" (Sahlins
citado por PAGES-DELON, 1989, p.158).
Num espaço talvez intermediário entre a análise de Sahlins e a de
Michèle Pagès-Delon, que exibiremos a seguir, encontra-se o recente
trabalho do francês Frédéric Monneyron La Frivolité Essentiel
(2001), cujo esforço é o de compreender o fenômeno moda à luz das
ferramentas lançadas por Gilbert Durand, através da sua teoria do
imaginário, desenvolvida em As Estruturas Antropológicas do
Imaginário. O autor defende a hipótese de que o imaginário da moda
fornece a possibilidade de penetrar na superfície social, nas
profundesas societais, percebendo seus esquemas, arquétipos, e por
conseqüência, as grandes estruturas antropológicas que definem uma
época e que lhe dão sentido. A partir deste pressuposto, Monneyron
utiliza a definição de Durand dos três grandes gêneros estruturais
de imagens fomentadas pela imaginação humana, a saber: as estruturas
esquizomorfas ou heróicas, que revelam o regime diurno do
imaginário; as estruturas místicas e as estruturas sintéticas que,
ambas, revelam o regime noturno do imaginário para analisar não
apenas as tendências da moda por época, bem como para enquadrar a
criação pessoal de alguns estilistas.
Importante esclarecer o que o autor entende por cada uma dessas
estruturas e como as transporta para o universo da moda. As
estruturas esquizomorfas se definem pelo simbolismo da elevação, da
luz; as estruturas heróicas são representadas pela separação; as
místicas pela geometrização, pela intimidade, pela sensorialiade das
representações; e as sintéticas pela antítese, pelo ciclo, pela
harmonização dos contrários, pela dialética. No universo vestimentar
essas estruturas se materializariam da seguinte forma: vestimentas
que reenviam simbolicamente, de algum modo, ao tempo e a morte, como
cor preta, são inscritas nas estruturas esquizomorfas. Roupas que
jogam com a oposição velado/desvelado, como a minissaia também se
encontram nesse registro. Já os vestidos volantes, drapeados,
plissados, que dão impressão de viscosidade, cobinações de latex e
materiais sintéticos são identificados como peças pertencentes às
estruturas místicas e, portanto, ao regime noturno do imaginário.
Nas estruturas sintéticas encontram-se as formas vestimentares que
tendem a efetuar uma síntese dos contrários, como, por exemplo,
criações que visam abolir a oposição masculino/feminino,
fechado/aberto; também justaposições de matéria ou de forma
pertencentes a tradições culturais diferentes, como ocidental e
oriental ou mesmo jogos entre passado e presente.
Desse modo, o autor afirma, por exemplo que as imagens de moda
produzidas entre 1965 e 1970, alta costura e prêt-à-porter, revelam
o regime diurno do imaginário, e mais particularmente, as estruturas
esquizomorfas. Já a moda dos anos 70 se caracteriza por uma imersão
total das imagens no regime noturno, entre estruturas sintéticas e
místicas. Na década de 80, particularmente no período que se estende
entre 1981 e 1987, há um predomínio das estruturas heróicas, que
atingem seu apogeu em 87 com a coleção alta costura de Christian
Lacroix, marcada pela suntuosidade e referências mediterrâneas. Com
os anos 90, as estruturas sintéticas e místicas se propagam através
da confusão de épocas, culturas, gêneros. A pregnância das
estruturas místicas se manifesta através da exigência de conforto,
de uma relação de quase fusão entre corpo e vestimenta, uma procura
interior e uma demanda mística de ligação, cujo trabalho minimalista
de Hussein Chalayan e de seus colegas japoneses são a expressão mais
significativa.
Sinteticamente exibido, o itinerário desenvolvido por Monneyron,
através do imaginário da vestimenta e da moda, tendo como referência
as ferramentas propostas por Durand, parece se fragilizar na medida
em que tenta afastar, de modo excessivo, a vestimenta da
identificação recorrente com a futilidade, a frivolidade. Opera,
nesse sentido, um empenho gigantesco, pretencioso, talvez, em busca
de aceder ao imaginário global de uma sociedade através do
imaginário da moda e da vestimenta. Reforça ainda um certo
esquematismo quando associa o sucesso de um costureiro, de um
estilista a partir da correspondência entre o seu imaginário
vestimentar pessoal e o imaginário vestimentar de uma época. Além de
aplicar de maneira muito reducionista os conceitos elaborados por
Durand, o que, certamente, conduz o leitor a apreender o trabalho
com hesitação devido a sua sistematização forçada.
Vislumbramos uma aproximação da abordagem que intentamos privilegiar
aqui no trabalho da socióloga Michèle Pagès-Delon, que talvez dê um
passo à frente de Sahlins no que diz respeito à analise do
vestuário. Ainda que tenha uma forte inspiração de cunho
sociológico, a autora também se desvencilha do refrão da distinção
social pura e simplesmente e integra a dimensão simbólica da moda de
modo interessante, propondo, de fato, uma relação dialógica, e,
talvez, nesse sentido, lúdica, entre a aparência corporal como
construção social e enquanto espaço de criação individual.
Vale ressaltar, como faz a autora, que ainda no campo da criação
individual, a aparência corporal é mediatizada pelo social e suas
estruturas em diversos níveis, entre os quais destacariam-se:
controle social das aparências; o nível de interpretação do social
sobre a exposição das práticas de construção da aparência, em que
estão incorporados os diversos registros de saber sobre o corpo e
suas aparências disponíveis numa sociedade dada, num momento
histórico determinado; o ciclo das modas em que as escolhas são
canalizadas pelas leis de um mercado econômico particular; o
enraizamento sócio-cultural do ator (sexo, idade, profissão, nível
de formação, etc., mas também as diversas maneiras de conceber as
relações sociais de sexos, de classes, de gerações...).
Outro fator importante na análise de Michèle é a crítica que a
autora faz a uma determinada corrente de pensamento que interpreta a
busca da excelência corporal como um índice do aumento do
individualismo e do narcisismo de certas camadas sociais, como
sugere Gilles Lipovetsky, por exemplo, em O Império do Efêmero,
David le Breton em Corps et individualisme ou mesmo certas
considerações de Baudrillard. Constatar que esse foi um dos
elementos que deu margem, inclusive, à emergência da moda enquanto
sistema, como já mostramos, não deve, entretanto, levar a conclusão
de que estes foram fatores isolados e determinantes. Como bem
observa Michèle, "fazer da procura da excelência corporal uma
simples procura hedonista e narcísica nos parece um pouco redutor; é
ocultar um pouco rapidamente todo um esforço que, exatamente ao
contrário, parece, no contexto atual, retomar todo seu vigor" (Idem,
p. 105).
A autora insiste no fato de que a aparência corporal é, de fato, uma
extraordinária matéria sêmica, da qual experimentamos
cotidianamente, no simples e habitual ato de se vestir todas as
manhãs; a aparência corporal é também uma construção e é uma
arqueologia desta construção à qual nós somos expostos. Na sua
interpretação da aparência corporal, Michèle revela a vontade de
reconciliar dois modos de abordagem: a perspectiva estrutural
(recuperando as funções que completam a aparência do corpo:
distinção, significação e comunicação) e a perspectiva dos jogos dos
atores sociais: utilização do corpo e de suas aparências possíveis
em função das definições que eles dão a certas situações e o
desenvolvimento de estratégias e táticas para evitar por exemplo, a
"perda da face".
A partir desta perspectiva, Michèle nos convida a observar as
relações estabelecidas entre o corpo e a roupa, destacando, ao
menos, três modos de diálogos possíveis entre esses dois elementos
ou três modos de apropriação diferenciados do vestuário, que como
arriscamos interpretar corresponderiam, por sua vez, a modos
distintos de atribuição de valores à indumentária: a primeira delas
conceberia a roupa como elemento de valorização do corpo, cujo
dispositivo semiósico estaria relacionado aos valores de beleza e
sedução;
(...) através da vestimenta, a estética corporal é visada, porque
ela permite seja por em evidencia algumas das partes julgadas como
particularmente atraentes, seja a dissimulação de imperfeições
corporais inadmissíveis para os atores sociais que tem uma
expectativa quase artística do corpo (PAGES-DELON, 1989, p.66).
O segundo veria a aparência como "estado da natureza" e, portanto,
encontraria-se próximo aos valores utilitários de proteção do corpo;
Nenhum aspecto lúdico de sedução deve ser vislumbrado pela
vestimenta, nenhuma preocupação estética; a vestimenta deve ser
adaptada às condições de vida e sobretudo a um corpo que é antes de
tudo percebido como máquina destinada a trabalhar ou/e que deve
antes de tudo ser preservada em bom estado (Idem, p. 69).
E o terceiro trataria o vestuário como uma "segunda pele", no
sentido em que valorizaria sobretudo o conforto, a liberdade de
movimentos, etc, revestido de um valor ligado à saúde e ao bem estar
pessoal.
As vestimentas aqui são concebidas como uma "segunda pele". Estar a
vontade numa roupa confortável é o princípio fundamental: o corpo
não deve ser nulamente restringido nem por uma roupa, nem por outras
condições percebidas como coercitivas. (...) É a liberdade do corpo
que é aqui visada (Idem, p.71).
Para além desses três modos de diálogos possíveis entre a roupa e o
corpo, podemos ainda fazer referência a um outro aspecto: a situação
cerimonial/convivial ou a aparência espetáculo, como batiza Michèle.
Se é um grande casamento com um número importante de participantes,
ou se é um casamento íntimo, se a cerimônia compreende o rito
religioso ou se ela se concretiza apenas no civil, se se é
testemunha, pai ou mãe dos noivos ou simplesmente participante, os
investimentos não serão idênticos porque as implicações não são as
mesmas (Idem, p. 124).
Um dos fatores mais enfatizados pela autora é a condição de
possibilidade de reconhecimento que a aparência corporal permite.
Levando-se em consideração cada um desses modos de apropriação da
roupa em sua relação com o corpo, o importante é lembrar que é
através deles que o reconhecimento do outro se efetiva e essa é a
condição primeira de sociabilidade (no dizer Simmeliano) ou mesmo
interação (à la Goffman) que faz sociedade, que engendra
comunicação. A aparência corporal aparece, assim, não apenas como um
sub-produto da vida social, o efeito combinado de diversos
determinismos estruturais e culturais, mas sim como uma fonte e
aposta fundamental na dinâmica da socialização. Pode ser considerada
como uma instância imaginária e mítica, na medida em que revela uma
relação entre o indivíduo e o mundo, entre o indivíduo e os outros e
entre o indivíduo e a sociedade.
O vestuário deve ser descrito sobretudo como instituição; o
historiador e o sociólogo não devem apenas estudar os gostos, os
modos ou as comodidades, eles devem cercar, coordenar e explicar as
regras dos usos, as interdições, as tolerâncias, etc; eles devem
observar não apenas as imagens ou os traços dos costumes, mas as
relações e os valores, pois estes são os elementos que, de fato,
estabelecem as condições preliminares de toda a relação entre a
vestimenta e a sociedade.
A moda como mídia
Retomando as considerações de um dos maiores teóricos da
comunicação, o canadense Marshall McLuhan, entende-se por media todo
e qualquer prolongamento do corpo, um instrumento criado pelo homem
para assessorá-lo no dia a dia, ou seja, uma técnica, uma
tecnologia.
É nesse sentido que compreende-se a roupa e também os acessórios
como uma espécie de tecnologia que prolonga a morfologia humana, que
fornece uma outra dimensão ao homem e que confere a distinção entre
o homem e o animal. "Se a imagem humana é primeiramente morfológica,
a segunda, histórica e culturalmente integrante do corpo, é a
roupa". A moda é um mass media no sentido em que ela é ao mesmo
tempo espaço de comunicação e meio de mediação entre indivíduos,
grupos sociais e culturais, entre civilizações inteiras. A moda é um
mass media porque ela é um instrumento do discurso simbólico da
comunicação representada pela iconicidade. O próprio pesquisador
canadense já definia a roupa como extensão da pele há 30 anos,
entendendo o vestuário como "um mecanismo termo-regulador e um meio
de definição social do indivíduo".
Mesmo sem explicitar essa definição, também Quentin Bell é sensível
à dimensão significante do vestuário e a sua incorporação como um
prolongamento do corpo humano. "Nossas vestimentas são tão parte de
nós mesmos que não podemos jamais ser indiferentes a seu estado: é
como se o tecido prolongasse naturalmente o corpo, até mesmo a
alma", enfatiza Bell. Embora sua abordagem privilegie muito mais os
aspectos econômicos, a partir da hierarquia das necessidades,
observamos em várias passagens o reconhecimento da dimensão
significante da indumentária, como o comentário acima que se estende
através da reprodução da frase de uma senhora ao poeta Emerson: "o
sentimento de estar perfeitamente elegante nos traz uma paz interior
que a religião procura em vão nos dar" (Bell, 1992, p.18).
Além disso, a partir do momento em que a moda (fashion) passa a ser
vista como materialização de um esquema simbólico, ela concorre para
estruturar historicamente as épocas, e ao fazê-lo ela tece um fio de
comunicação no tempo. A indumentária assume uma responsabilidade
informativa que dá conta dos diferentes períodos da civilização e da
condição de vida dos homens socialmente constituídos. Revisitando
McLuhan, pode-se dizer que, ao atualizar um modo de configuração
espaço-sócio-temporal através de um revestimento - a roupa - sendo
um recurso tecnológico, a moda reclama para si o estatuto de mass
media.
Inserida no ambiente da comunicação e em intensa interação com
outros mass media - a exemplo da televisão, dos jornais, das
revistas, dos rádios, entre outros - , a moda reflete, atualmente,
um "excesso de tribalismo proporcionado pelos ventos soprados em
grande velocidade de um 'savoir-faire' europeu. No fundo o grande
desafio deste media, tão propriedade de cada indivíduo, é que a
massificação do media seja tratada com reservas".
A observação de Suzana Girard compartilha do ambiente reflexivo que
encara a moda como elemento ao mesmo tempo homogeineizante e
massificador, assim como também um sistema provedor da vontade
individual. Tratar com reservas o fator "mass" próprio dos "media"
tende a reforçar, justamente, uma posição de cautela que deve se
estender aos meios de comunicação de massa, desvinculando-os da
moldura da alienação e da manipulação tão cara aos teóricos da
comunicação que entendem, até hoje, o quarto poder - a comunicação -
como um mal do qual não se consegue escapar.
Ora, tal concepção não mais se sustenta até porque foi toda ela
articulada sob a sólida concepção que reduziu a comunicação à
informação, através do famoso modelo EMR. Ao fugir da teoria
clássica da comunicação que a observa e analisa enquanto vetor
transmissor de mensagens, em que está suposta a presença de um
emissor e de um receptor; tende-se a acolher a idéia de que, antes
de qualquer coisa, comunicar é "por em comum", é "partilhar algum
sentido". De acordo com as formulações de Monclar Valverde (1995), é
preciso romper com a dicotomia emissor/receptor, sem promover,
entretanto (como se costuma fazer), o deslocamento do pólo emissor
para o pólo receptor reforçando a noção de um sujeito autoral, fonte
de informação. É preciso entender, insiste o autor, que nenhum
emissor existe no sentido em que ele não instaura realidade sígnica
inaugural; o emissor é um condutor da comunicação, na medida em que
a comunicação é entendida como um fluxo, uma onda, na qual é preciso
mergulhar, como assegura Daniel Bougnoux (1993).
Imersa nessa grande onda, também a indumentária pode ser vista como
um condutor; peças do vestuário fazem circular certas configurações
de sentido. Se a Teoria da Comunicação já se liberou dos pólos
emissor/receptor, em que o primeiro teria, supostamente, controle da
mensagem difundida, acolhendo, hoje, a idéia de que a comunicação é
um fluxo, em que não há emissor, nem destinatário precisos, também
podemos apreender o vestuário como um condutor, cujos sentidos vão
sendo atribuídos durante o fluxo, a depender das circunscrições
históricas (contextos sociais, temporais, espaciais, etc). É, na
verdade, esse processo dialógico em que o corpo empresta forma à
roupa que configura sentido. Assim sendo, seria difícil sustentar a
hipótese de que a moda enquanto media tivesse o poder supremo da
massificação, sem que o usuário tivesse a possibilidade de rejeitar,
driblar a mesma, do mesmo modo que acontece com as outras medias.
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Renata Pitombo é jornalista, mestre e doutoranda em Comunicação e
Cultura Contemporâneas pelo Programa de Pós-graduação em Comunicação
e Cultura Contemporâneas da Faculdade de Comunicação da UFBA.
Fonte: GHREBH - http://revista.cisc.org.br